Por Rúbia Rodrigues
Por muito tempo, as memórias da infância ficavam guardadas em álbuns, longe dos
olhos do mundo. Hoje, essas imagens circulam nas redes sociais com naturalidade.
Muitos pais compartilham fotos e vídeos dos filhos em momentos cotidianos, sem
perceber os riscos envolvidos.
Esse comportamento é chamado de sharenting, junção das palavras share (compartilhar) e parenting (criação de filhos). Ele descreve a prática, cada vez mais comum, de pais que publicam regularmente a vida dos filhos pequenos nas redes. Isso inclui desde imagens em casa, em festas e viagens, até registros de situações íntimas como choros, birras, banhos e detalhes de rotina. O problema é que essa exposição, ainda que motivada pelo afeto, pode ultrapassar limites importantes de segurança, privacidade e dignidade.
O risco se intensifica quando a exposição acontece em tempo real. Muitos pais,
influenciadores ou não, compartilham a rotina dos filhos em stories ou vídeos
contínuos. Essa frequência acaba revelando os lugares frequentados, horários de
deslocamento e hábitos da família. É como se, sem perceber, montassem um mapa da
vida da criança. Isso facilita a ação de criminosos e pode colocar em risco sua integridade. A Sociedade Brasileira de Pediatria já alertou que imagens postadas por familiares alimentam redes de abuso sexual infantil (sbp.com.br).
Os danos emocionais também preocupam. Crianças e adolescentes superexpostos,
especialmente aqueles que aparecem em perfis com muitos seguidores, já enfrentam comentários maldosos, memes e críticas em massa. Trata-se do chamado hate, expressão em inglês usada para descrever ataques virtuais gratuitos e repetitivos.
Soma-se a isso o bullying, que, apesar de anterior à era digital, ganhou novos contornos na internet. O bullying virtual é silencioso, persistente e muitas vezes invisível aos olhos dos adultos, mas profundamente cruel para crianças e adolescentes.
Mesmo sem entender completamente, esses jovens sentem os efeitos do julgamento público, do ridículo, da pressão. Para muitos, isso deixa marcas que seguem pela vida.
É claro que nem toda presença digital é prejudicial. Há famílias que usam as redes para registrar com afeto momentos especiais. Existem inclusive perfis familiares que geram
visibilidade, parcerias e até monetização. Mas é preciso responsabilidade e maturidade
para entender que, no Brasil, crianças não trabalham. Elas podem até participar, mas cabe aos adultos garantir que isso ocorra com respeito, consciência e limites legais.
A Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Geral de Proteção de
Dados já oferecem ferramentas importantes de proteção. No entanto, vivemos em um mundo que muda o tempo todo. A internet, as redes sociais, a inteligência artificial e um universo cada vez mais veloz de inovações digitais exigem mais do que leis prontas.
É hora de pensar em normas específicas para proteger a infância nesse novo cenário, onde o tempo e a imagem se tornam públicos em segundos.
O cuidado digital começa dentro de casa. Antes de postar, vale a pergunta. Esta imagem protege ou expõe? Meu filho aprovaria essa publicação no futuro? Ele ainda não tem maturidade para decidir por si. Cabe aos adultos refletirem com empatia, não
sobre curtidas, mas sobre consequências.
Em casos de separação, o tema torna-se ainda mais sensível. O uso das redes pode se transformar em ferramenta de conflito ou até de alienação parental. A imagem da
criança passa a ser usada, muitas vezes de forma velada, para atingir o outro genitor.
Por isso, ao elaborar acordos de guarda ou convivência, é fundamental que o plano parental preveja também regras sobre exposição digital. A orientação jurídica, nesse contexto, é essencial para prevenir disputas e proteger a criança em todos os aspectos.
Por fim, a exposição não saudável é aquela que revela o que deveria ser íntimo. Que torna público o que deveria ser cuidado. Proteger é também escolher o que não mostrar. É guardar no silêncio da memória aquilo que a infância tem de mais sagrado.
O direito de ser criança em paz.
Rúbia Rodrigues
Rúbia Rodrigues é advogada, especialista em Direito das Famílias e Sucessões pela
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP-RS).
Fundadora do escritório Rúbia Rodrigues Advocacia, possui mais de oito anos de
experiência na área, com atuação no Brasil e no exterior.
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